VAMOS ÀS CARREIRAS – V*
Outra influência notável que
as carreiras médicas tiveram foi nos internatos médicos. Eram duas estruturas
que, pode-se dizer, se completavam, imbuídas do mesmo sentido de progressão
pela formação, pela aquisição de conhecimentos, pelo trabalho feito, tudo
avaliado periodicamente e conferindo cada vez mais autonomia e
responsabilidade.
Os internatos, as suas
regras e programas, os orientadores, os responsáveis pela formação, tudo isso
assentava nas carreiras, e vai sobrevivendo porque, pelo menos teoricamente,
elas se mantêm. Mas à medida que os mais velhos forem saindo - e estão a sair
de forma acelerada e prematura – corre o risco de rapidamente estiolar e perder
valor e sentido.
Já há sinais claros dessa
tendência, para quem os quiser ver. Um dos pontos altos no começo duma carreira
era quando pela primeira vez um especialista se via designado para integrar um
júri de exame final de internato. Não só isso traduzia o reconhecimento pelos
seus pares de que estava em condições de avaliar outros, àquele nível, como era
um factor de enriquecimento curricular na sua vida profissional. Pois agora há
jovens especialistas que, pura e simplesmente, recusam desempenhar essas
funções. Recusam interromper o seu trabalho diário hospitalar, deslocar-se a
outro hospital, “perder tempo” a examinar candidatos a especialistas na sua
área. E, vendo bem, não terão razão? Vejamos: não estão integrados em nenhuma
carreira, são contratados para fazer um determinado trabalho clínico, ganham em
grande medida à peça ou à hora, quantos mais doentes tratarem mais bem vistos
serão por quem dirige o hospital, não precisam dum currículo diferente desse
para poderem ser nomeados por esses dirigentes para lugares de
responsabilidade, até mesmo directores de serviço ou de departamento. É assim
ou não é? Poderá achar-se incorrecta a atitude daqueles colegas?!
A preocupação com a
aprendizagem e o ensino era uma constante comum aos internatos e às carreiras,
enformados, na realidade, à volta disso, conduzindo à evolução profissional e à
ascensão a funções e lugares cada vez de maior importância, responsabilidade e
poder e obrigação de decisão. No início, aliás, o internato era o primeiro grau
da carreira. Num dado momento, o Ministério da Saúde retirou os internos da
carreira médica, por razões administrativas, e agora retirou todos os médicos,
por razões do mesmo tipo. Ficaram apenas os que já estavam integrados nelas,
ocupando lugares a extinguir quando vagarem, uma vez que não há novas entradas.
Curiosamente, nestas condições os concursos para os graus e lugares vão-se
multiplicando nos vários hospitais, numa autêntica girândola de fim de festa.
Unicamente porque quem entrou tinha a expectativa e tem por isso o direito de
tentar progredir até ao topo.
Os especialistas contratados
pelos hospitais EPE não pertencem às carreiras médicas, não podem por isso
concorrer nesses concursos nem, por maioria de razão, integrar os respectivos
júris. Antes desta nova lei de gestão, a sua entrada
na carreira fazia-se no fim do internato, agora não se faz nunca. Pertencem ao
colégio da sua especialidade, e é só por isso que podem fazer parte de júris de
fim de internato. Já vimos que com razão para grande falta de motivação – a
mesma que para o ensino, seguramente.
Também seria legítimo pensar
que a desierarquização hospitalar provocada pela lei de gestão EPE iria
reflectir-se negativamente na prossecução dos internatos. Vejamos: quem é o
responsável máximo pela formação em cada Serviço? O director de serviço,
naturalmente. Mas é natural que esse não seja o mais diferenciado no Serviço?
Ou, pelo menos, um dos mais diferenciados? Aceite como tal pelos outros? Isso
corresponde obviamente a uma desestruturação, que é a maneira melhor de
destruir uma estrutura.
A pouca ou nenhuma
preocupação evidenciada com a desestruturação na área da formação ressalta
desde logo, também, do facto de se nomearem como presidentes de júris finais de
internato assistentes hospitalares em júris que integram, para além deles,
chefes de serviço. É uma antevisão do futuro imediato: como serão formados, e
estruturados, os júris de fim de internato? Com que critérios? Quando não
houver necessidade de progredir numa carreira técnica para se ser seja o que
for dentro de um hospital? E em qualquer júri?
Ao longo desta série de
artigos temos vindo a enumerar as consequências negativas da actual lei de
gestão hospitalar nas carreiras médicas. E na formação pós-graduada e no
serviço nacional de saúde. A Saúde no nosso país assentava num tripé: carreiras
médicas, internatos médicos, Serviço Nacional de Saúde. Com este conjunto
conseguiram-se resultados notáveis, num país pequeno e de poucos recursos,
pondo-o a ombrear nesta matéria com os melhores, gastando muito menos que eles.
Um dia alguém resolveu mudar a parte administrativa, por razões exclusivamente
desse foro. Dessa mudança intempestiva – e parece que pouco pensada – resultou
a aniquilação de um daqueles pés, as carreiras, carcomido por uma doença (a
dita lei de gestão), em vias de se propagar rapidamente aos outros (os
internatos e o SNS). Coxo dum pé, o tripé abana e tomba rapidamente.
Pretendeu-se, na prática, substituir a gestão clínica por uma gestão
preponderantemente administrativa, e disso não se vislumbram quaisquer ganhos,
nem sequer administrativos e económico-financeiros. Como consequência directa,
apenas um incremento notável da burocracia, acompanhando o aumento galopante do
número de administradores nos hospitais e a sua actividade, recompensada,
aliás, com aumentos de ordenado e bónus pecuniários.
O responsável principal pelo
descalabro diz a quem o convida para dizer que faria tudo da mesma maneira –
ainda não se apercebeu. Um dos Secretários de Estado da Saúde afirma que não
sabe o que o Serviço Nacional de Saúde virá a ser no futuro – começou a
aperceber-se. Os médicos já sabem, os doentes virão rapidamente a saber.
Se algo bem estruturado,
tendo passado no teste do tempo, operacional, com um resultado global invejável
num país em que tudo o mais anda por baixo quando comparado com o que se passa
lá fora, é alterado nalguns aspectos e fica por isso, de repente,
desestruturado e cambaleante, seria lógico pensar que haveria de se corrigir o
que se fez e que perturbou severamente o conjunto. Quer dizer – e temo-lo dito
nas raríssimas vezes que fomos chamados a emitir opinião – seria lógico
esperar-se que algo na lei de gestão hospitalar fosse corrigido. Mas não,
pretende-se teimosamente enveredar pelo caminho de mudar tudo o resto.
Na verdade, acabou por se
entender agora que há necessidade de recuperar o que ficou lesado, nomeadamente
as carreiras médicas. Mas, a manterem-se inalteradas as mudanças
desestruturantes, afigura-se muito improvável vir-se a obter um novo equilíbrio
eficaz e duradouro, isto é, um novo tripé com pés fortes e estáveis. Parece-nos
um tratamento unicamente sintomático e não etiológico, quando se conhece a
etiologia e se tem cura para ela. Os médicos não actuam assim. Ou não devem.
Carreiras assentes num contrato colectivo de trabalho são a proposta actual. Será possível compatibilizá-las com a gestão EPE? E com a avaliação SIADAP que se anuncia para os médicos? Da próxima vez terminaremos esta série de artigos de opinião sobre o problema das Carreiras Médicas em Portugal em 2009.
*Artigo escrito em 2009.
In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra
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