VAMOS ÀS CARREIRAS - III*
A actual lei de gestão
hospitalar, criando os hospitais EPE, derivou do facto de quem administra os
hospitais públicos considerar que não era capaz de o fazer bem com a lei
previamente existente. Teve, portanto, uma causa puramente administrativa, isto
é, mudou-se a lei de gestão para quem administra ser capaz de administrar. O
problema é que com esse objectivo atropelaram toda a organização clínica
hospitalar, desestruturando-a e conduzindo à inactivação e destruição das
carreiras médicas. Isto sem aumentar visivelmente a eficácia administrativa,
mas com um aumento exponencial do número de administradores circulando nos
gabinetes e corredores dos hospitais. Dito de outro modo: alteraram as regras
do jogo para o poderem ganhar mas, além de não o conseguirem, baralharam-no, e
suspeito que no momento actual já ninguém sabe muito bem que jogo se está a
jogar e como vai acabar.
Quer dizer, com uma
alteração de gestão que no fundo traduziu uma incapacidade, destruíram algo que
funcionava bem, tão bem que foi considerado como a base do Serviço Nacional de
Saúde, o qual, por sua vez, levou a que um país pobre e em geral desorganizado
e ineficaz como o nosso pudesse ser considerado o 12º no mundo, a contar de
cima, na área da saúde. E o problema maior é que a modificação foi feita de tal
forma, de tal maneira impensada – ou tão elaborada… -, que tornou muito difícil
uma adaptação das carreiras médicas de modo a salvá-las. Mas falemos sobre
isso, sem derrotismo, antes com os pés bem assentes na realidade.
Uma das alterações impostas
foi que as administrações dos hospitais empresarializados podem contratar quem
quiserem, pelos critérios que estabeleceram como necessários para o hospital
que foram postos a dirigir. Seria com certeza inteligente para um empresário se
procurasse contratar profissionais bem preparados, com provas dadas, no topo da
carreira. Mas isso implicaria duas coisas: pagar-lhes mais, por um lado, e, por
outro, ter um projecto de desenvolvimento da “sua” empresa-hospital que a
levasse a evoluir e a fazer cada vez mais e melhor. Talvez haja algum conselho
de administração assim, ou venha a haver, mas a rotina não tem sido essa: antes
se pretende apresentar muitos doentes vistos e tratados a baixo custo,
descartando-se para os vizinhos tudo o que custe mais caro ou implique mais
investimento. Incluindo em pessoal especializado mais capaz e diferenciado.
Lá se vai, assim, a lógica
do quanto mais diferenciado melhor. Algumas excepções talvez o pudessem ainda
justificar, mas não passariam disso mesmo: excepções. E não se pode gerir um
país com base nalgumas excepções. Que, louváveis que sejam, não serão com certeza
um estímulo para uma carreira.
A grande esperança dentro do
“status quo” criado reside no contrato colectivo de trabalho, que se pretende
abranja tudo, hospitais privados e hospitais empresarializados. Estes
adquiriram as regras e a liberdade da medicina privada, embora com capital do
Estado. Mas este apenas pode intervir na dotação orçamental, na nomeação dos
conselhos de administração e na avaliação dos relatórios finais, não pode
dirigir ou alterar a gestão propriamente dita. Veja-se, por exemplo, que todos
os conflitos eventualmente existentes com os trabalhadores – já não
funcionários públicos – não são resolvidos em sede do Ministério da Saúde,
terão de ser dirimidos nos tribunais, civis ou administrativos. Os
trabalhadores – médicos incluídos – terão de se queixar ao sindicatos, onde,
aliás, pelas novas regras, terão de estar inscritos.
As novas leis de gestão
hospitalar e da administração pública, ao acabar a função pública tal como a
conhecíamos, vieram, na verdade, curiosamente, proletarizar mais os médicos e
indirectamente aumentar a intervenção dos sindicatos. Estes são os
interlocutores legais do governo e dos patrões, e os representantes dos médicos
face aos tribunais em problemas laborais. O contrato colectivo insere-se nesse
campo e, dadas as especificidades e as diferenças entre os vários tipos de
actividade médica, não sei se a evolução não passará também por uma
diferenciação de sindicatos e pelo consequente aumento do seu número.
No que respeita à actividade
hospitalar – que interessa especificamente à nossa Associação – o contrato colectivo virá
impedir o que agora se passa com contratos individuais feitos à completa
vontade dos gestores dos hospitais, contratando quem querem, pelo ordenado que
decidem, com a diferenciação que entenderem, sem prestarem contas a ninguém. E
sem os contratados saberem mesmo quanto ganham os outros. Quer dizer, pelas
mesmas funções – independentes do seu grau e categoria obtidos nas carreiras
médicas moribundas - podem auferir vencimentos absolutamente diferentes, e sem
sequer o saberem. Nestas condições, qual o estímulo para procurarem ascender
numa carreira profissional? Estímulo, sim, para terem amigos políticos que lhes
facultem de algum modo uma contratação que tem muito de política, no sentido
óbvio da “politiquice”. E que lhes permitam, por exemplo, obter uma licença sem
vencimento e acto contínuo serem contratados para fazer o mesmo que faziam
antes mas pelo triplo do pagamento… Mais uma vez discricionariamente e sem
qualquer relação com quaisquer carreiras passadas e muito menos futuras.
Mas se o contrato colectivo
pode pôr alguma ordem nisto, continuará a não haver quadro de trabalhadores em
cada uma das empresas-hospital, entregues que estão pela actual lei de gestão
hospitalar à actuação individual de cada um dos conselhos de administração.
Consoante o que planearem para o “seu” hospital (e pode ser deles tão pouco
tempo como 3 anos, ou até menos), assim poderão contratar estes ou aqueles
médicos, mais ou menos diferenciados. Preferindo os mais diferenciados, claro,
se lhes pudessem pagar tão pouco como aos menos diferenciados. Mas se o
contrato colectivo não permitir isso, terão de investir nos mais baratos, que
esses irão com certeza progredir por si próprios, ganhando experiência ao
tratarem muitos doentes, de preferência com pouca despesa... E quem subir no
grau de diferenciação, irá passar a receber mais? Ou terá de procurar outra
instituição que lhe queira pagar o correspondente ao novo grau? Quem passará a
receber mais? Quem for nomeado por serviços prestados? Ao hospital, ou a um
ocasional conselho de administração?...
Em que medida poderão
coexistir, na actual gestão hospitalar, graus e categorias obtidos por concurso
(sejam quem forem os júris para tal) e a avaliação burocraticamente feita por
chefes nomeados discricionariamente em cada instituição, com regras como as do
SIADAP, que, se não fossem desmotivantes e geradoras de irritação, conflitos e
desinteresse, seriam risíveis por ridículas?
E qual a repercussão de tudo
isto na formação médica contínua?
É todo um conjunto de
problemas que foram criados há menos de dois anos e que estão por resolver. De
que continuaremos a falar na próxima vez.
*Artigo escrito em 2009.
In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra
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